Publicação: domingo, 21 de junho de 2009 – jornal Diário Popular
Antropólogos voltam os olhos para a vida em colônias de pescadores como a Z-3; as dificuldades, a linguagem e os conflitos são observados a partir da própria realidade cotidiana dos trabalhadores
Há 59 anos, seu Antonio Tomás Ourique, hoje com 72 anos, começava a aprender um ofício que iria determinar toda sua vida e sua relação com a natureza. Morador da Colônia Z-3, com o pai aprendeu a ser pescador e da água sempre tirou o sustento de toda família. “Acho que a gente já nasce com o destino para a pescaria.” Mais que uma profissão, uma identidade, compartilhada com familiares, amigos e vizinhos.
O universo de pessoas como seu Antonio foi a temática central do seminário Pescadores e pescarias: saberes, significados e conflitos, que ocorreu na Universidade Federal de Pelotas por iniciativa do Departamento de História e Antropologia. No encontro que reuniu pesquisadores e alunos na Faculdade de Museologia, o oceanógrafo Gustavo Moura falou sobre conflitos territoriais e resistência no estuário da Lagoa dos Patos.
Já o antropólogo Gianpaolo Adomilli falou sobre saber tradicional, modernização e territorialidade na pesca embarcada, focando o caso dos pescadores de São José do Norte, pesquisado em seu doutorado. “As populações de pescadores mantêm comunicação, em maior ou menor grau. O que ocorre no mar e na lagoa é parecido”, comenta. E por isso a discussão pode se estender à colônia de Pelotas. Por mais presente o avanço tecnológico e por mais fortes que sejam os impactos socioambientais da modernidade, a tradição permanece e a profissão ainda passa de pai para filho, de irmão para irmão.
Destino e amor
Gosto ainda maior pela pesca tem o filho adotivo de Ourique, Tiago Campos, de 23 anos. Desde os 12 o rapaz segue a profissão da família e a vontade inclusive o fez abandonar o Ensino Médio. O deslocamento diário até a sede o principal entrave na conciliação de trabalho e estudo. “Talvez tivesse continuado a estudar se fosse aqui na Z-3. No centro, precisa de mais coisas, a passagem, uma roupa melhor, o dinheiro para um lanche.”
Mesmo assim, nem por isso o saber de Tiago em mais de dez anos de atividade deveria ser desvalorizado, afirma o antropólogo. O conhecimento e a memória das comunidades pesqueiras, como a de São José do Norte pesquisada por Adomilli, sobre a costa, a Lagoa dos Patos e o oceano, tanto pelo aspecto natural quanto o cultural, é rico e não deveria ser ignorado ou perdido. “Se isso ocorre, no futuro gastam milhões para pesquisar e fazer um levantamento sobre a memória deles.” Fonte viva e de fácil acesso hoje.
Conflitos e invisibilidade
Apesar do conjunto de saberes e memórias, Adomilli percebeu, em sua pesquisa, uma certa invisibilidade do grupo para a sociedade e o poder público. “Falta um encontro. O saber científico não é superior ao deles, mas existem impasses históricos e posturas que contribuem para a marginalização dos grupos.” A falta de um diálogo que leve em consideração os conhecimentos de quem vive a pesca na prática é sentida pelos pescadores nas determinações oficiais.
Ourique exemplifica isso na escolha de um único tipo de malha para a pesca em toda a lagoa. “No Fórum da Lagoa dos Patos decidiram que seria a malha 50, mas essa só pega peixes maiores. Aqui para nós, se não for a 45, não conseguimos pegar.” Para ele, cada local deveria ter especificações próprias do que é permitido e o que não, bem como a adequeação dessas normas conforme a safra. “Duarante o defeso, o liguado e o peixe-rei são liberados, mas a malha é proíbida. Vou pescar com o quê? Com caniço?” brinca.
É o trabalho de normatização genérica para abarcar realidades tão diversas identificado por Adomilli. “O alto mar, o centro da Lagoa e a baía exigem distintos saberes. O poder público não vê a diferenciação e elabora normas que não se encaixam para todos.” O resultado, para ele, são pescadores engessados para acompanhar o ritmo da natureza.
Os impasses estão, também, dentro das comunidades pesqueiras. “A escassez de espaço pesqueiro tem impactos na comunidade”, avalia o antropólogo. Para Ourique, falta concordância. “Em terra não existe união. No mar, pode ser meu inimigo, mas eu não vou deixar com um motor estragado, sou obrigado a rebocá-lo. Agora, aqui, é cada um por si e Deus por todos. Niguém concorda com niguém.” Conforme o trabalhador, o pensamento individualista dificulta até mesmo reivindicações frente a orgãos como o Ibama e prejudica toda a categoria. Mas no mar ou na Lagoa, eles sabem que nunca estão sozinhos.